terça-feira, janeiro 04, 2005

Pedro

Acordou, mal reconhecendo o lugar onde estava. Soabriu os olhos na penumbra, um cheiro nauseabundo no ar. Na boca, o gosto azedo do vinho barato.

Remexeu-se na cama suja e vislumbrou, com a parca luz que adentrava pelas frestas da janela, folhas amassadas, velhas folhas datilografadas, amassadas e cheias de sangue. Demorou a perceber que seus dedos doíam, navalhados pela gilete enferrujada que há muito não usava.

Teve um enjôo, ajeitou-se de lado e dormiu novamente.

--------------------------------------------------------------------

Quando o pai escurraçou-o de casa chamando-o vagabundo, abriu dois grandes lençóis e colocou dentro deles todos os seus livros e papéis. As roupas couberam em uma pasta que usava a tiracolo. Levou-a ao colo juntamente com a máquina de escrever, presente da avó no dia de seus anos. Carlos, o amigo que lhe deu a carona, foi também quem lhe indicou a nova moradia: uma velha água-furtada numa viela fedida a mijo, vizinhança de botecos ensebados, putas e cachorros magros e sarnentos. Acomodou-se ali provisoriamente, até que encontrasse melhor lugar para viver.

Quatro anos já haviam se passado e tudo permanecia como no dia em que chegara, exceto pelas garrafas vazias que se amontoavam pelos cantos. A clarabóia servia de depósito para a sua senhoria que, de lá, nada retirou.

Uma antiga penteadeira lhe serviu de escrivaninha junto a uma cadeira de encosto de veludo vermelho puído. Do velho divâ de forro rasgado, fez sua cama. Seus livros dividiam espaço no chão com caixas de papelão cheias de roupas velhas e peças enferrujadas de metal. Tudo era antigo e pesado, os móveis eram escuros e estavam todos carcomidos, assim como a janela e as portas, por cupins. Havia uma grande cortina de chita, grossa de poeira, cuja cor não se podia mais distinguir. Hoje, era de um ocre acizentado, com grandes ramos marrons desenhados, de extremo mal-gosto. Servia ao menos para barrar um pouco o vento gelado dos dias de frio, já que as janelas encontravam-se todas ladeadas por cacos de vidro. A um canto, uma imponente pia de mármore encardida pingava, noite e dia. O assoalho, já apodrecido por estar constantemente molhado, servia de morada para centenas de baratas que se alimentavam dos restos deixados em qualquer lugar. Habituara-se rapidamente a conviver com os insetos que caminhavam por sobre suas coisas sem se darem conta de sua presença.

As paredes imundas estavam cobertas de bolor, o que conferia ao lugar uma atmosfera viciada. Até o ar, ali, pesava.

Dizia-se escritor. A bem da verdade, nunca havia escrito mais que alguns versos melancólicos para uma ou outra de suas amantes cortesãs.

Pedro era o verdadeiro mal-do-século.

---------------------------------------------------------------------