quarta-feira, agosto 18, 2010

Mais uma vez acordou e seu primeiro pensamento de olhos nem ainda abertos foi: vai começar de novo, meu deus.

Tentou reprimir esse pensamento, afastá-lo de si para não amaldiçoar o resto do dia, mas aquele dia novo, com o que é que pudesse ser que trouxesse para ele, só lhe dava a sensação de peso e monotonia, insosso dia sem novidades, fossem elas quais arroz e feijão requentados e secos, queria mesmo era comer nada.

Pedro não queria nada, esse era o seu maior desespero. Tentou pensar um pensamento mais ou menos assim: o que me angustia é a minha vida. Se eu levasse vida diferente, não carregaria tanto peso de nada. E tentou imaginar a vida que gostaria de ter, Pedro tentou, verdadeiramente, enquanto tentava calçar os sapatos no escuro (pra que?), descobrir o que não gostava em sua vida e o que gostaria de ter, em seu lugar, mas não conseguiu pensar em nada. ABSOLUTAMENTE NADA. Pedro nada mudaria, não havia uma vírgula, naquela manhã sem cor e sem ruídos que ele mudaria para se imaginar feliz. Simplesmente porque sabia que nada o poderia fazer feliz. Nem uma casa nova, nem um novo amor, nem bastante dinheiro ou o trabalho que queria. O amor de ninguém. Nada tiraria Pedro daquela angústia, porque esta era a angústia do viver.

Nenhum movimento externo, nenhum luxo, nenhuma alegria inesperada, nada teria o poder de mudar Pedro porque o que o prendia à vida, assim como ela era, aquele peso sem medida, aquele vazio de ser, o que o prendia era ele mesmo: Pedro conseguia, cada vez menos, sair de dentro de si.

Na noite passada lera, de poeta outro em livro de outrem: “eu não saio de mim nem pra pescar”. Quis comprar o livro só por causa dessa frase, ele também não pretendia mais sair de dentro de si. Antes: não conseguia, embora tentasse e desejasse, por vezes. Eis um homem fraco de vontade.

Quando em criança, Pedro tinha pavor absoluto de areia movediça. Por vê-la em filmes, imaginava-a em qualquer pocinha d’água, ali na esquina, na frente mesmo do bar do Seu João, ou da Portuguesa. Apavorava-o a ideia de ser engolido por força tal que não lhe desse saída, sem ter onde se agarrar, afundar até o sem fim, vagarosamente, o suplício envolvendo cada parte do seu corpo, a luta do membros nos momentos iniciais, tentando levantar e emergir, cada vez mais afundado, logo o peso da areia não permitiria mais os movimentos em busca de algo em que se agarrar para tentar sair – e mesmo não haveria nada – o pescoço se erguendo tentando esticar-se para evitar o inevitável. E logo a boca, o nariz, os olhos, os ouvidos, a areia invadindo todos os seus sentidos até entrar de vez dentro dele, até que fizesse parte mesmo daquilo e nunca se pensasse além de areia movediça.

A areia movediça de Pedro era ele mesmo. E ele já sentia os grãos de areia em sua boca.

segunda-feira, agosto 02, 2010

A segunda-feira era o pior dia.

Uma semana inteira pela frente, uma semana toda marcada pela falta de perspectivas e pela vontade de não-ser.

Pedro levantou ainda meio tonto de sono e percebeu que aquela segunda seria ainda pior do que as outras. O céu cinza, a garoa fina, o dia frio. Como se a vida fosse uma tristeza de se ter.

Levantou, urinou na latrina amarelada por uma crosta, de quantos mijos? Quantos outros perdedores como ele não haviam acordado naquele mesmo quarto fedido e frio, de tábuas soltas e merda de cupim? Ficou surpreso quando descobriu que o pozinho que caía dos móveis de madeira eram fezes. Sempre achou que era um resto de madeira, qualquer coisa, nunca lhe passou de cupins cagando, e essa. Passou a sentir nojo quando via, mas nem por isso se mobilizava a varrê-las deixava-as lá, a bosta em pó que voava com um assopro e se acumulava nos cantos dos móveis, prova de que somos todos iguais mesmo, seres que comem e cagam e, entre uma coisa e a outra, fazem o que se chama de viver.

Pedro não suportava os começos. Sempre mais difíceis e complicados, o começo da semana, o começo do dia, todo santo dia a mesma coisa, um novo dia amanhecendo e perturbando a penumbra. Só a noite o aprazia. A noite e seu perfume úmido, suas cores foscas, seu silêncio sedutor. Nada o angustiava mais do que ver o nascer do sol, um sentimento de perda indescritível, um sufoco interior, amargor na boca, gosto ruim de respirar com a boca aberta, cuspe seco, um pouco de sangue pelas gengivas e nos dentes.

Era meio-dia quando Pedro se levantou e, após urinar, tomou um copo d’água. Pensou em ligar o computador, começar logo aquilo de uma vez por todas, ver se a vida tinha alguma coisa para ele, mas sentiu um enjôo tão grande, tão profundo desterro, que tomou o único rumo que podia e que sabia seguro: voltou para debaixo das cobertas, o quarto no escuro, a modorra das janelas fechadas, bolor, frio e respiração da noite. A vida, se quisesse, que esperasse.

(mas ninguém saberia dizer o esperar: pelo quê?)