terça-feira, janeiro 18, 2005

"Você, quando não dorme
quem é que você chama?"
(C. Buarque)
Simplesmente deixou que acontecesse.

Encontrou o antigo amigo depois de alguns anos sem contato algum. Outrora o vínculo entre eles havia sido forte, porém, hoje não havia mais um terço do carinho existente. Mesmo assim passaram a noite toda conversando; nada que já não tivesse sido dito antes, apesar de passado o tempo.

Aceitou quando quis levá-la para casa, mesmo sendo cedo ainda. Queria era chegar logo, precisava sumir de si.

Havia visto, a ele, acompanhado por outra. Já estava mais do que na hora de se habituar àquela situação mas não se podia. Vê-lo tão perto, rindo, como se alheio à sua dor, lhe sufocava. Sabia que ele sofria também mas... precisava de um subterfúgio qualquer, sair de si, simplesmente sair.

Chegaram em casa, ela tomou algo forte para que pudesse se livrar logo de seus sentidos. Lamentou que tivesse tão pouco. Antes, quereria apenas deixar de sentir.

Quando deu por si, o tal amigo estava por cima dela, beijando-a com avidez. A vertigem em sua respiração era pior do que qualquer overdose ou coma que pudesse ter. Dezenas de imagens tomavam de assalto sua mente, sentimentos díspares, uma tristeza sem fim.Não fez sexo, muito menos amor. Apenas deixou, apática, que seu corpo fosse tomado. Era nele que pensava, nele e em seu amor impossível. Quis pedir para parar, queria que aquele homem saísse de cima dela, sumisse de sua vista mas resignou-se e esperou que terminasse.

Deu um jeito de colocá-lo para fora imediatamente a propósito de qualquer desculpa. Não poderia olhar para aquele rosto nunca mais, sentia um nojo indescritível ao olhar para ele.

Quando se viu só, entrou em completo desespero. Sentia-se a mais vagabunda das putas, como se tivesse sido maculada em público. Talvez desejasse humilhar aquele amor tardio entregando-se a outro. Talvez pensasse estar dizendo a ele que poderia possuir sua mente e seu coração, mas de seu corpo, faria o que bem entendesse. Tudo o que conseguiu foi um tormento o qual nunca poderia imaginar. Sentia-se impura, ímpia. Uma cadela de rua teria mais dignidade do que ela.

Tomou um longo banho e se agarrou a antigas pelúcias no desejo idiota de recuperar algo de infância. Não conseguia ficar em seu quarto, tinha a impressão de que nunca mais poderia voltar a se deitar em sua cama. Queria mesmo era sair de seu corpo, de sua alma doente e febril. Tinha nojo de si mesma.

Deitou-se no chão e chorou, chamando alto pelo nome dele, até que amanhecesse.

segunda-feira, janeiro 17, 2005

Diário de Pedro - 18 de outubro

Onde estarão as palavras todas? Procuro-as sem conseguir encontrar.
Foram-se; mui provavelmente para o mesmo lugar para onde foram os sentimentos. Seguiram-nos, com certeza.
Nada mais há dentro de mim além deste torpor apático.
Se ao menos bucólico fosse...
Mas não, nada mais há, nem mesmo a nostalgia.

Todo o turbilhão que existia dentro de mim dorme agora esse sono letárgico. Não passo de matéria vã e amorfa, sem alento ou consternação possíveis: alegoria prosaica num teatro vil, onde as tragédias passam por mim tão incólumes quanto as alegrias.
Como hei de traduzir agora sentimentos que não os tenho?
Não sei. Faltam-me palavras.

sexta-feira, janeiro 14, 2005

Soube dela através de amigos em comum. Na verdade não deu a eles muita credibilidade embora estivesse curioso para conhecer a famosa mulher.


Encontraram-se então, pela primeira vez, em casa alheia.
Ao vê-la emplumou-se mais do que de costume. Não por vaidade, mas por medo. Enquanto tentava se proteger, observava-a de longe. Ela como que não se movia. Era mais um fluir, muito embora parecesse não confortável com alguma coisa; talvez o corpo não se encaixasse bem à sua estrutura natural. De modos que se esvaia, preenchendo todo o ar. Seu semblante demonstrava ao mesmo tempo calma e tempestade. Nunca se saberia qual seu próximo instante. Era linda, de uma beleza etérea e melancólica. Tinha cabelos leves. Cabelos vivos, moldura anelada a lhe envolver a face branca. Quisera ser o vento pra brincar com cabelos tais, viver entre os anéis. Seu maior desejo naquele momento era enterrar os dedos naquela pluma castanha e ali permanecer, esquecido pelo tempo.
Começou a entender assim que lhe foi apresentado e a viu sorrir. De repente era como um clarão, uma alma a olho nu. O riso simplesmente lhe acontecia. Era então toda criança.
Neste mesmo instante de lhe conhecer, recebeu um beijo protocolar e lhe aconteceu sentir seu cheiro. Ela cheirava a erva nova, a mato recém criado. Neste mesmo instante de lhe conhecer começou a morrer e olhou-a nos olhos. Este foi o maior crime que cometera em sua vida metafórica. Nunca poderia explicar, por mais que dominasse as palavras, o que se via em olhos dela. Eram olhos machadianos, olhos inventados, eram aqueles os olhos de ressaca. Muito tempo depois iria descobrir que não se podia olhar para eles por muito tempo, era algo que não se havia de suportar. Ela sempre os mantinha e quem ousasse fitá-los se desconcertava a ponto de duvidar.

Olhar para os olhos dela era um perder-se.

Quando percebeu, perdido estava o escritor.

sábado, janeiro 08, 2005

Fingia submissão para não ter de mostrar o quanto podia.
Tinha-os, a todos, em suas mãos. E eles sabiam disso. Por medo ou prudência, faziam não saber-lhe, transformando aquilo tudo num jogo dúbio de faz-de-conta.

terça-feira, janeiro 04, 2005

Pedro

Acordou, mal reconhecendo o lugar onde estava. Soabriu os olhos na penumbra, um cheiro nauseabundo no ar. Na boca, o gosto azedo do vinho barato.

Remexeu-se na cama suja e vislumbrou, com a parca luz que adentrava pelas frestas da janela, folhas amassadas, velhas folhas datilografadas, amassadas e cheias de sangue. Demorou a perceber que seus dedos doíam, navalhados pela gilete enferrujada que há muito não usava.

Teve um enjôo, ajeitou-se de lado e dormiu novamente.

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Quando o pai escurraçou-o de casa chamando-o vagabundo, abriu dois grandes lençóis e colocou dentro deles todos os seus livros e papéis. As roupas couberam em uma pasta que usava a tiracolo. Levou-a ao colo juntamente com a máquina de escrever, presente da avó no dia de seus anos. Carlos, o amigo que lhe deu a carona, foi também quem lhe indicou a nova moradia: uma velha água-furtada numa viela fedida a mijo, vizinhança de botecos ensebados, putas e cachorros magros e sarnentos. Acomodou-se ali provisoriamente, até que encontrasse melhor lugar para viver.

Quatro anos já haviam se passado e tudo permanecia como no dia em que chegara, exceto pelas garrafas vazias que se amontoavam pelos cantos. A clarabóia servia de depósito para a sua senhoria que, de lá, nada retirou.

Uma antiga penteadeira lhe serviu de escrivaninha junto a uma cadeira de encosto de veludo vermelho puído. Do velho divâ de forro rasgado, fez sua cama. Seus livros dividiam espaço no chão com caixas de papelão cheias de roupas velhas e peças enferrujadas de metal. Tudo era antigo e pesado, os móveis eram escuros e estavam todos carcomidos, assim como a janela e as portas, por cupins. Havia uma grande cortina de chita, grossa de poeira, cuja cor não se podia mais distinguir. Hoje, era de um ocre acizentado, com grandes ramos marrons desenhados, de extremo mal-gosto. Servia ao menos para barrar um pouco o vento gelado dos dias de frio, já que as janelas encontravam-se todas ladeadas por cacos de vidro. A um canto, uma imponente pia de mármore encardida pingava, noite e dia. O assoalho, já apodrecido por estar constantemente molhado, servia de morada para centenas de baratas que se alimentavam dos restos deixados em qualquer lugar. Habituara-se rapidamente a conviver com os insetos que caminhavam por sobre suas coisas sem se darem conta de sua presença.

As paredes imundas estavam cobertas de bolor, o que conferia ao lugar uma atmosfera viciada. Até o ar, ali, pesava.

Dizia-se escritor. A bem da verdade, nunca havia escrito mais que alguns versos melancólicos para uma ou outra de suas amantes cortesãs.

Pedro era o verdadeiro mal-do-século.

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