domingo, dezembro 26, 2004

Silogismo

Abri os olhos e não acreditei no que vi. Menos pelo fato da aceitação depender do entendimento – e eu não compreendia deveras o que havia acontecido – que pela coragem da qual dependera o meu ato e da qual, antes, não me soubera capaz: que é necessária uma ousadia inabalável para se virar as costas no exato momento em que o rompimento se faz.

Não quisera ver o que havia feito antes que o ato se consumasse em absoluto, antes de ter a certeza de que, se viesse a me arrepender, nada mais poderia ser feito pois que a pulsação daquela vida interrompida me era insuportável e a mim restara tão somente a tarefa de calar a intenção do grito na boca de há muito emudecida.

Mas por que haveria de aceitar o que já era agora inexorável? Por que haveria de me espantar com meu próprio arroubo de lucidez se desde sempre me soubera incapaz de suportar a traição? Fora traída – pelo ato ou pelo ser? – e neste mesmo último e extremo ato de libertação, o engano se fez: poderia me fazer de surda aos seus grunhidos, poderia fechar os olhos ao torpe que escorria de si mas ele continuaria. Em mim. E, latente, continuaria a latejar. Nada mais poderia ser feito, o invólucro nada mais era do que uma ilusão... nunca haveria rompimento possível pois que a essência se encontrava renhida tão somente em mim.

Misto de gozo e de assombro, enigma da certeza, nos olhos turvos, a constatação : a paz seria desde sempre e ainda apesar de agora, inatingível.

Saíra da vertigem para cair em maresia.

Fechei os olhos. Nunca poderia acreditar no que fiz.

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo: partido.



(Inspirado no conto O Ovo e a Galinha, de Clarice Lispector)