domingo, dezembro 26, 2004

Carta ao Amigo


E, agora, amigo, é chegada a hora de abrir-lhe o meu segredo. Tenho já os olhos abertos. Morri para a vida.
A partir de agora meu alimento é pó. Lamento, mas não posso mais à urbe: tenho um amor para guardar.
Pastorearei meu rebanho lírico até que amanheça um dia exangue sob as soleiras.

Ah, como desejaria o grito! Ir ao mundo nua, sem pelúcias. Quereria antes o clamor, o apelo súbito, a lira equivocada dos amantes. Perdeu-me a urbe. Sou agora guardiã dos sete enlevos do beiral. Ninguém me espere: tenho agora de sentir.

E ainda nada disse. Mesmo assim, ouça-me: se deitei por terra sementes de girassol, se antes sabíamos que sob as réstias adormecia em amarelo o meu canteiro, por que então assustar-nos com a corola? Não posso resistir ao desejo: há ainda humanidade demais em mim. Porventura julgávamos, a mim, ambos, terra infecunda? Talvez tenhamos piamente acreditado na esterilidade da semente, por isso admirável benfeitoria tenhamos dado ao horto.

E novamente me chega o desejo do grito. É chegada já a hora mas tardo o momento de falar-te em respeito à perfeição mentirosa de uma tão cara verdade. O luto deve ser guardado com respeito. Rara vez a sentença de um sábio é fagulha exígua.

Para continuar a falar é necessário que me veja. Sou. Não uso máscaras ou costumes. Meu substrato é o longo olhar que deste à imagem de um eu que fui e que teria coisas a lhe dizer. Hei de falar-te, mas para isso precisei me despir e voltar. Não houvesse voltado, não haveria a necessária espontaneidade imberbe, é preciso que me explique, a imprescindível crueldade pueril dentro do inevitável de contar-te (não fosse a que fui, estaria em minha boca a secura rouca das declarações). Mas agora, a mim, nada me é proibido. Sim, devo contar-te que o erro se fez. E digo-o com tranqüila devoção.

Devo me guardar. Disse, não uso máscaras e minha pele é tênue névoa, perene oscilação. Não fechemos os olhos para a obviedade dos fatos: nada mais tenho a oferecer aos transeuntes.

Digo-te, muito embora devesse permanecer calada, na morada das palavras sem sentido. Digo-te com o peso do querer-me erro. Digo-te com o coração em luto por atraiçoar tua certeza.

O beijo, meu amigo, não é a traição da amizade, quanto dói-me dizer-te.

A traição, é tão somente, o próprio desejo.

Silogismo

Abri os olhos e não acreditei no que vi. Menos pelo fato da aceitação depender do entendimento – e eu não compreendia deveras o que havia acontecido – que pela coragem da qual dependera o meu ato e da qual, antes, não me soubera capaz: que é necessária uma ousadia inabalável para se virar as costas no exato momento em que o rompimento se faz.

Não quisera ver o que havia feito antes que o ato se consumasse em absoluto, antes de ter a certeza de que, se viesse a me arrepender, nada mais poderia ser feito pois que a pulsação daquela vida interrompida me era insuportável e a mim restara tão somente a tarefa de calar a intenção do grito na boca de há muito emudecida.

Mas por que haveria de aceitar o que já era agora inexorável? Por que haveria de me espantar com meu próprio arroubo de lucidez se desde sempre me soubera incapaz de suportar a traição? Fora traída – pelo ato ou pelo ser? – e neste mesmo último e extremo ato de libertação, o engano se fez: poderia me fazer de surda aos seus grunhidos, poderia fechar os olhos ao torpe que escorria de si mas ele continuaria. Em mim. E, latente, continuaria a latejar. Nada mais poderia ser feito, o invólucro nada mais era do que uma ilusão... nunca haveria rompimento possível pois que a essência se encontrava renhida tão somente em mim.

Misto de gozo e de assombro, enigma da certeza, nos olhos turvos, a constatação : a paz seria desde sempre e ainda apesar de agora, inatingível.

Saíra da vertigem para cair em maresia.

Fechei os olhos. Nunca poderia acreditar no que fiz.

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo: partido.



(Inspirado no conto O Ovo e a Galinha, de Clarice Lispector)

A Festa

O fato é que havia Amor. Não do jeito que deveria haver, mas além. Estiveram desde sempre juntos e agora surgia aquele sentimento incoveniente entre eles. Não sabiam, definitivamente, o que fazer.

E, desde que fora sabido, não conseguiam resistir ao apelo de estarem perto um do outro para que pudessem sofrer.

Poderiam muito bem, e é o que deveriam, se afastar a título de qualquer motivo, afinal, ninguém estranharia deveras , já que a proximidade entre eles nunca houvera realmente se dado em público.

Mas, enfim, estavam próximos novamente. E sofriam daquele Amor de hora atrasada.

A ela, cabia a constatação de vê-lo bêbado pela segunda vez, depois de tantos anos, por sua culpa, assim como da primeira. A ele, recaía como peso extra o fato de que ela tenha tocado no assunto primeiro. Nunca deveria ter verbalizado o fantasma de dentre eles.

Esperaram que a festa tivesse acabado para que pudessem se torturar com mais veemência e maior imprudência. Ela desconfiava que houvessem burburinhos entre a família. Não poderiam ser tão burros assim. Ele possuia o aval da moralidade; acima de qualquer suspeita. Seria um escândalo e um susto. A hora era inadequada. Estavam se arriscando à toa. E por nada.

Depois de terem a garantia de estarem embriagados, ficaram trocando metáforas até que o dia houvesse raiado de há muito. Nunca eram diretos, tentando disfarçar o que sentiam de si mesmos. As alegorias das quais se valiam não afirmavam nada um para o outro. Ou tudo. Podiam significar ou isto ou aquilo. E assim deveria ser, embora tudo estivesse muito às claras. Haveriam de se negar, sem usar o não, até o fim.

Ele se deitou no chão e ficou olhando o céu, enunciando imagens sem sentido. Ela, dada ao sofrer agônico, ficou dando voltas e mais voltas ao redor dele. Vez ou outra dizia alguma coisa que poderia significar qualquer coisa.
Sem a família, talvez tivessem até... O desespero da presença ausente entre eles era claustrofóbica. Seus ouvidos zuniam.

Ela chegou a desejar o beijo.

Ele, só partiu quando ela o deixou.

Nunca se tocaram.