Mais uma vez acordou e seu primeiro pensamento de olhos nem ainda abertos foi: vai começar de novo, meu deus.
Tentou reprimir esse pensamento, afastá-lo de si para não amaldiçoar o resto do dia, mas aquele dia novo, com o que é que pudesse ser que trouxesse para ele, só lhe dava a sensação de peso e monotonia, insosso dia sem novidades, fossem elas quais arroz e feijão requentados e secos, queria mesmo era comer nada.
Pedro não queria nada, esse era o seu maior desespero. Tentou pensar um pensamento mais ou menos assim: o que me angustia é a minha vida. Se eu levasse vida diferente, não carregaria tanto peso de nada. E tentou imaginar a vida que gostaria de ter, Pedro tentou, verdadeiramente, enquanto tentava calçar os sapatos no escuro (pra que?), descobrir o que não gostava em sua vida e o que gostaria de ter, em seu lugar, mas não conseguiu pensar em nada. ABSOLUTAMENTE NADA. Pedro nada mudaria, não havia uma vírgula, naquela manhã sem cor e sem ruídos que ele mudaria para se imaginar feliz. Simplesmente porque sabia que nada o poderia fazer feliz. Nem uma casa nova, nem um novo amor, nem bastante dinheiro ou o trabalho que queria. O amor de ninguém. Nada tiraria Pedro daquela angústia, porque esta era a angústia do viver.
Nenhum movimento externo, nenhum luxo, nenhuma alegria inesperada, nada teria o poder de mudar Pedro porque o que o prendia à vida, assim como ela era, aquele peso sem medida, aquele vazio de ser, o que o prendia era ele mesmo: Pedro conseguia, cada vez menos, sair de dentro de si.
Na noite passada lera, de poeta outro em livro de outrem: “eu não saio de mim nem pra pescar”. Quis comprar o livro só por causa dessa frase, ele também não pretendia mais sair de dentro de si. Antes: não conseguia, embora tentasse e desejasse, por vezes. Eis um homem fraco de vontade.
Quando em criança, Pedro tinha pavor absoluto de areia movediça. Por vê-la em filmes, imaginava-a em qualquer pocinha d’água, ali na esquina, na frente mesmo do bar do Seu João, ou da Portuguesa. Apavorava-o a ideia de ser engolido por força tal que não lhe desse saída, sem ter onde se agarrar, afundar até o sem fim, vagarosamente, o suplício envolvendo cada parte do seu corpo, a luta do membros nos momentos iniciais, tentando levantar e emergir, cada vez mais afundado, logo o peso da areia não permitiria mais os movimentos em busca de algo em que se agarrar para tentar sair – e mesmo não haveria nada – o pescoço se erguendo tentando esticar-se para evitar o inevitável. E logo a boca, o nariz, os olhos, os ouvidos, a areia invadindo todos os seus sentidos até entrar de vez dentro dele, até que fizesse parte mesmo daquilo e nunca se pensasse além de areia movediça.
A areia movediça de Pedro era ele mesmo. E ele já sentia os grãos de areia em sua boca.